segunda-feira, 26 de abril de 2010

Drummond e Clarice

Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector são sem dúvida alguma dois dos nossos mais complexos escritores. A obra de ambos apresenta diferenciadas nuances e não cabem em apenas uma definição. Os dois fugiram, na grande maioria das vezes em que escreveram, da órbita comum seja da literatura, seja do pensamento sobre o cotidiano. O que escreviam não era “arroz de festa”, como se supõe hoje, pelas inúmeras citações que encontramos de um e de outro nos mais diversos meios de comunicação.
O poeta corre o risco de ser conhecido e reconhecido pelos óculos que lhe roubam cotidianamente no banco em que está sentado frente ao mar; a romancista pela intérprete sutil da alma feminina. A mídia, pressupondo que está ajudando a divulgar a obra dos escritores, acaba por achincalhar e diminuir os sentidos ocultos e dignos de apreciação que possuem.

Se Drummond, com sua ironia, pressupõe um mundo que não vale a pena, não menos Clarice viu a alma humana como um desastre profundo e a sociedade que esta alma moldou como incapaz de ultrapassar o senso de ridículo em que toda comunicação se baseia. São seres estranhos ao mundo cotidiano, não obstante nele influíssem e revelassem a alguns o desastre obscuro da linguagem.

Torná-los cotidianos, na verdade, é perder o que de rico possuem, é torná-los semelhantes aos diversos escritores menores que vicejam pelo mundo das letras nacionais e estrangeiras; é, em suma, impedir que o leitor mergulhe na obra que criaram e ali desfrutem das surpresas, das torções que o cotidiano e sua linguagem sofrem e que por isso constituem beleza.

Ler Drummond e Clarice a partir da mídia é como não lê-los. O risco da exposição e da “vendagem” é necessariamente o risco da mediocridade, até porque as razões que levam a mídia a privilegiar este ou aquele texto são menos a de proporcionar conhecimento do mundo, do homem, da linguagem do que tornar esse conhecimento como já dado, já sabido e, portanto, desinteressante.

Como exemplo do que se diz, tome-se um dos poemas mais conhecidos de Drummond, o famigerado No meio do caminho. Caso – como o faz a leitura apressada do poeta – tente-se verificar na pedra um significado metafórico, o poema não sai do lugar ou se esgota no lugar comum dos obstáculos, mas a argúcia da linguagem faz com que se medite um pouco mais. O meio do caminho está presente em dois poemas outros da tradição literária. O canto 1 do inferno de Dante, logo no primeiro verso apresenta, o seguinte:


Nel mezzo del cammin de nostra vita
Mi ritrovai per una selva oscura
Ché la diritta via era smarrita.


Tais versos permitiram a Olavo Bilac, o seguinte soneto:


Nel mezzo del camim


Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.


Parece-me que Drummond bebeu nas duas fontes e as modificou. É justamente nessa capacidade de emprestar novidade à tradição – e rir dela – que a poesia de Drummond se instala na percepção do leitor. Parece-me que a chave da leitura de Dante está justamente no transtorno da via reta agora perdida pela descida ao inferno – inferno dos poetas que de resto é o inferno da linguagem.

Se Bilac atualiza, para um romantismo mal disfarçado, a busca da amada – objeto da poesia de Dante, Drummond percebe que o caminho tomado pelo poeta brasileiro não é mais válido e, com maestria, propõe, para a descida do poeta florentino, o elemento cotidiano que é a pedra – símbolo da eternidade – e a belíssima repetição não canônica e provocativa do verbo ter. Assim e a um tempo, retoma as repetições do Bilac, dando a ela uma outra face. Retira de seu poema as amadas e o diálogo de um eu para um tu e faz com que a metáfora de Dante seja substituída pela pedra metonímia. A selva oscura reaparece nas retinas fatigadas, sem que sobre ela recaia a via perdida e trágica do Poeta.

Conforme se afirmava acima, a utilização metafórica, reafirmada pela mídia, corrobora para que o movimento de releitura observado em Drummond se desfaça e em seu lugar reapareça um conceito de poesia que é não só anacrônico como propositor de uma tradição mal-pensante que toma o fazer poético por qualquer coisa distanciada da reflexão sobre a linguagem e sobre o homem.

Tão trágica quanto a de Drummond é a situação de Clarice.



Oswaldo Martins

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