quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Billie Holiday, autora de Strange Fruit

                                                                                                               Por Ronald Iskin

Na Nova York dos anos vinte e trinta, muitos negros americanos se notabilizavam como expoentes de um novo gênero musical que conhecia ali uma notoriedade de que jamais desfrutaria depois, especialmente após a entrada em cena do rock n’roll nos anos cinqüenta. Viver e trabalhar nos arredores da Rua 52 oferecia a estas jovens estrelas do jazz emergente um nível de reconhecimento social, que, embora de espectro limitado, seria dificilmente desfrutado pelos negros em outras partes dos Estados Unidos nas primeiras décadas do século passado. Nada seria mais coerente, portanto, de que fosse de um destes poucos beneficiados por uma imagem pública a criação de pungente libelo musical denunciando a barbárie de que eram vítimas seus irmãos sulistas.


Billie Holiday já era uma destas estrelas da cena jazística efervescente dos anos trinta. Seus primeiros sucessos para a Columbia, entretanto, em pouco antecipavam as páginas de antologia que se seguiriam com "Good Morning Heartache", "Lover Man" ou "Don’t Explain", mais afeitos que estavam à leveza da swing music, o gênero dançante que abria as portas do jazz num maior número de frentes.

"Strange Fruit" representou uma ruptura de tal ordem neste repertório inicial, que a Columbia, titular de todos seus lançamentos até então, não se interessou em lançá-la, cabendo a um selo de pouca expressão, e mais tarde absorvido pela Decca, a pequena Commodore, a responsabilidade pelo feito histórico. A gravação de Strange Fruit se tornou de tal maneira uma marca pessoal de Billie que a maior parte dos fãs da canção atribuem sua autoria à cantora.

O mais interessante, porém, é que mais do que ninguém a própria Eleanor Fagan se acreditava autora dos versos e da melodia que descreviam corpos negros sumariamente executados tais como “frutos amargos pendurados nos galhos dos álamos”. Mas não era. Abel Meeropol, um judeu caucasiano a cujo pseudônimo, Lewis Allan, também está creditado o hino patriótico "The House I Live In", uma das peças de resistência de Frank Sinatra, é na verdade o dono do crédito.

É isto que nos revela David Margolick em "Strange Fruit- Billie Holiday e a biografia de uma canção" (Cosacnaify). Através da janela aberta por esta curiosa história de autoria controversa ele nos oferece ângulos menos utilizados quando se busca retratar uma das mais marcantes vozes da música popular do século 20, além de resgatar o nome de Meeropol de uma quase total obscuridade, aproveitando para enriquecer nosso conhecimento das coisas do jazz.

A gravação seminal está felizmente acessível em duas edições do disco original da Commodore (uma delas oferece também takes alternativos e interessará mais de perto aos completistas), cuja intensa qualidade musical, aliás, está longe de se esgotar na famosa canção. Para comprová-lo basta ouvir a devastadora versão de "Yesterdays", o clássico de alcance quase operístico de Jerome Kern, cuja longa, e, em princípio, característica frase ascendente inicial Billie simplesmente ignora em favor de um quase recitativo monocórdio, o que nos deixa sem entender como a simplificação dos meios expressivos pode, muitas vezes, causar um efeito mais contundente do que o obtido pela forma estruturalmente mais complexa. Estes sulcos da Commodor e estão, sem chance a dúvidas, entre os mais importantes da carreira de Lady Day.

Margolick aproveita para também nos oferecer um panorama de outras gravações existentes da canção, com destaque para Abbey Lincoln, reconhecido epígono de Holiday, num emocionante álbum duplo ao vivo totalmente dedicado ao repertório da cantora. Aparecem também Dee Dee Bridgewater, que intitula um de seus discos a partir do nome de batismo de Holiday, além de registros de Carmen Mcrae, Nina Simone e mesmo de um talvez improvável Lou Lawls. Baseada na pesquisa de David Margolick, a Arlequim ativou seus distribuidores americanos a fim de recriar este panorama de "Strange Fruit" e de assim iluminar um pouco da história da canção americana.